segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O MILAGRE DAS FOLHAS

Recentemente, estudando o livro “O Princípio do Relógio do Sol”, do Prof. Masanobu Taniguchi, me lembrei da crônica de Clarice Lispector que dá também o título de nosso bate-papo.

“Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que só de ouvir falar? (...) Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada. \ Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. (...) Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza”. (Clarice Lispector).

“... penetra com frescor a imagem das árvores, dos pássaros e das pessoas do parque. Meus cinco sentidos recolocam essas existências ao redor, organizadamente, na parte frontal do meu cérebro, e aceitam com docilidade a luz, as cores, os sons, os movimentos e o cheiro, que dali são transmitidos. \ Também nesse dia, embebido na emoção ..., recolhi uma folha de altaneira caída perto das barras fixas. Não sei por que fiz isso, mas senti que aquela não era apenas uma de infinidade de folhas que se avolumam no chão, que, mesmo varrendo-as, não havia como jogá-las fora. ‘Aquela folha’ em especial me chamou a atenção. \ Quando uma planta adquire coloração de outono, as cores mudam primeiramente nas folhas que são submetidas ao ar frio. (...) Também a queda de cada folha se dá em diferentes momentos. Por esse motivo, o tapete de folhas caídas que cobrem o chão nos oferece uma rica e delicada variedade de cores diante de nossos olhos. (...) naquele dia, aquela folha, com listras da cor castanho-avermelhada sobre o fundo exuberante amarelo, exerceu em mim forte atração, fazendo com que voltasse para trás”. (O Princípio do Relógio do Sol).

O que os dois textos têm a ver com nossa conversa? Você e eu nos completamos. Artista e leitor. Um dá e o outro recebe criando a “sua” própria leitura, tornando o texto seu. Enquanto artista, creio piamente que quanto mais eu capto o mundo mais e melhor eu posso me expressar. Um músico, por exemplo, (que não é, infelizmente, o meu caso) não deve apenas trabalhar seu ouvido. É importante que trabalhe todas as suas portas de percepção – os sentidos. Eu, que sou da literatura, do teatro e das estórias, para poder me expressar devo conhecer o que quero passar. E como conhecer senão experimentando ou no mínimo pesquisando com afinco? E como experimentar ou pesquisar se não me abrindo para o que me acontece? Nada é realmente comum e repetitivo. Nada. E se achamos que é, é porque nos fechamos para o mundo. Exemplo: hoje acordei de madrugada, virei para um lado da cama no escuro pensando\sonhando com a Índia (por causa da novela que ontem acabou?), espreguicei, fui ao banheiro, pássaros cantavam, um dos meus cachorrinhos foi para meu quarto, li algumas páginas, as finais, do livro O Princípio do Relógio do Sol, outros pássaros cantavam, só um carro passou hoje e nenhum vizinho escutei, o sol entrou amarelo, mamãe não acordou ainda. Ontem foi diferente. Pensei\sonhei com outras coisas, não fui ao banheiro, as páginas que li ontem eram outras do mesmo livro, vários carros e transeuntes passaram, o sol estava avermelhado e mais quente. Tudo isso experimentei em poucos minutos.

E quantas coisas passaram despercebidas simplesmente porque nosso cérebro não dá conta de assimilar tudo. Pensemos no quanto é triste deixar de experenciar porque se fechou em seu... mundinho.

Bem, encerro nosso bate-papo convidando a se emocionar com seu dia e a se abrir para o novo sem abandonar o antigo. Aumentando assim sua riqueza para compartilhar mais com os outros.

Inté!

Para conhecer o texto de Clarice Lispector pode procurar no google sob o título O Milagre das Folhas Clarice Lispector. E para conhecer o livro “O Princípio do Relógio do Sol” pode procurar no sítio www.sni.org.br

Um comentário:

Cia. UNO disse...

Muito Bom o texto adorei as sutilezas do nosso dia-a-dia, a natureza todas as manhas nos trás uma sensação diferente se estivermos aberto a elas...Estou lendo um livro sobre movimento corporal que diz que devemos prestar atenção em que esta mais proximo da gente e que esta mais proximo da gente somos nós mesmos..Agradecer as pequenas benção para sim concretizar os grandes milagres..,Abrass..Muito Obrigado